Uma breve, porém poderosa, prece

Se você já foi a alguma aula de meditação no Centro de Meditação Kadampa Mahabodhi, ou em qualquer Centro ou Templo Kadampa no mundo, já ouviu a “Prece Libertadora”, ou “Louvor a Buda Shakyamuni”. Ela está no início de cada atividade kadampa, seja uma prece ou aula, e é bastante breve, com apenas 8 estrofes. Há alguma coisa muito mágica nesta prece, pois com somente algumas recitações, já a memorizamos quase por completo. Não raro, nos encontramos lembrando de algumas de suas palavras no meio do dia, contemplando a simplicidade e beleza dos pedidos que fazemos a Buda Shakyamuni em cada uma de suas estrofes. Uma das partes mais tocantes dessa prece diz: “Com as mãos postas me volto para ti, amigo supremo e imutável, e peço do fundo do meu coração”. Nela, nos referimos a Buda Shakyamuni como um “amigo imutável”, alguém para quem nos voltamos e pedimos ajuda no nosso caminho espiritual. Podemos, então, pensar: o que significa ter um amigo imutável hoje em dia?

Uma vida cheia de amigos, porém solitária

Uma reportagem da BBC News Brasil de 2022 relatou o quão difícil é fazer amizades na vida adulta. Amigos são muito necessários, tanto na infância quanto na vida adulta, mas à medida que o tempo passa, a vida agitada, a falta de tempo e as mudanças pelas quais um adulto passa dificultam a manutenção dos nossos laços de amizade. A reportagem diz: “Os velhos amigos são um tesouro, mas nada fica estático para sempre. Os velhos amigos se mudam ou seu tempo é ocupado pela criação dos filhos ou por suas carreiras. Se você não fizer nada, a solidão pode crescer silenciosamente à sua volta.” Trata-se de uma condição inerente à dinamicidade da vida moderna. Não é algo planejado ou intencional. Vamos vivendo dia após dia e quando nos damos conta, estamos muito distantes dos nossos amigos. No que diz respeito a fazer novos amigos, a reportagem mostra que o maior desafio para adultos é a falta de confiança. Este é o resultado de um estudo recente feito na Universidade de Tecnologia de Sydney, na Austrália, em que a maior parte dos entrevistados indicou que sente dificuldade de confiar em outras pessoas, sobretudo após ter passado por situações de rejeição ou quebra de confiança em suas amizades.

Confiar em um novo amigo envolve nos abrirmos e ficarmos vulneráveis, como em qualquer relacionamento humano. Abrir nosso coração não é mesmo um movimento fácil, e quando o fazemos, nem sempre é possível manter essas amizades por perto, com tantas mudanças que fogem ao nosso controle. Então quão precioso nos parece ter um amigo que está sempre conosco? Um amigo que é imutável, que nos ajuda a combater nossa solidão e aumentar nossa confiança em nós mesmos e nos outros? Buda Shakyamuni, assim como todos os Budas, são amigos que estão sempre conosco, onde quer que estejamos. Basta que nossa mente se lembre deles e lá eles estarão. Em verdade, eles nunca deixam nosso lado, nem sequer por um minuto.

A bondade de Buda, a bondade de todos os seres

Embora os Budas estejam sempre conosco, pode ser difícil perceber essa presença, sobretudo num mundo com tantas distrações. A presença de Buda é muito sutil para nossas mentes densas perceberem. Por isso ele se manifesta em formas que podemos reconhecer, como a de nosso Guia Espiritual, de nossos professores de Dharma, e nossa sangha.

Mas ele também pode se manifestar como o padeiro que nos atende, o carteiro dos Correios, a funcionária do metrô ou mesmo o remédio que tomamos para aliviar a dor. Tudo que nos beneficia pode ser observado como uma manifestação de Buda, pois a principal função dele é nos proporcionar paz continuamente, todo tempo, todos os dias.

Ele se manifesta de acordo com nossas necessidades e da maneira mais benéfica para nós. Assim, se olharmos com calma, veremos quantas vezes somos beneficiados por inúmeras pessoas, agindo como manifestações de Buda, nosso grande amigo. Da hora em que acordamos, até o momento em que vamos dormir, são incontáveis as vezes em que este amigo esteve conosco. Normalmente não percebemos sua presença, pois estamos muito ocupados ou distraídos, mas basta treinarmos nosso olhar e veremos claramente.

Em geral, experienciamos nosso bem-estar como algo pelo qual batalhamos e trabalhamos para alcançar, mas tudo que vivemos no mundo devemos à bondade dos outros. Todas as coisas das quais desfrutamos vieram da bondade dos outros. Pensemos, por exemplo, no lençol que cobre nossa cama. Podemos pensar que compramos esse lençol com o nosso dinheiro, que por sua vez trabalhamos muito para conseguir. Assim, todo mérito de tê-lo seria apenas fruto do nosso empenho. No entanto, para esse lençol existir, foi necessário que alguém acordasse muito cedo e colhesse a matéria prima no campo. Em seguida, foi necessário que pessoas confeccionassem o tecido e o enviassem para a fábrica, onde outras pessoas costurariam as peças. Por fim, foi necessário que vendedoras e vendedores muito gentilmente nos atendessem e assim, nós pudéssemos adquirir os lençóis em que hoje nos deitamos. É possível aplicar esse raciocínio a exatamente tudo que nos cerca e veremos quantas pessoas estão envolvidas em nosso bem-estar físico e mental.

Você pode argumentar que essas pessoas não fazem nada de graça, e não estão exatamente interessadas em lhe apreciar, mas sim, meramente fazendo o trabalho delas. Como Venerável Geshe-la nos explica em seu livro “Novo Oito Passos para a Felicidade”, isso não importa muito. Se fomos beneficiados por suas ações, então é mais construtivo gerarmos essa mente de reconhecimento e gratidão, afinal, todos que contribuem para nossa felicidade merecem nosso respeito. Ademais, não conseguimos ler mentes, então não sabemos de fato quais foram as intenções das pessoas.

Distintos, porém intimamente ligados

Pensar na bondade de todos os seres como manifestação da presença de Buda Shakyamuni em nossas vidas é extremamente poderoso. É uma mente de clareza que nos aproxima da realidade e evita os sentimentos de solidão e falta de confiança que frequentemente nos assolam.

Como Geshe-la diz:

Nossa impressão de que somos uma ilha, um indivíduo autossuficiente e independente, não possui relação alguma com a realidade. É mais próximo da verdade nos imaginarmos como uma célula no vasto corpo da vida – distintos, porém intimamente ligados a todos os seres vivos. Não podemos existir sem os outros, e eles, por sua vez, são afetados por tudo o que fazemos.

Esta é uma bela maneira de ver a nossa vida e de vivê-la também, imaginando que somos amigos de todos e que todos são nossos amigos. É assim que Buda atua, manifestando-se como a bondade de todos os seres, palpável em nossas ações cotidianas, todos os dias. É dessa maneira que ele se manifesta e atua como nosso amigo imutável, concedendo suas bençãos e paz mental.

Observar a bondade de todos nos permite também sentir como somos parte de um todo, muito maior e amplo, como o “vasto corpo da vida”. Isso ressignifica nossa experiência de vida, trazendo sentido a ela. É uma experiência de conexão, não somente com os outros, mas com nossa essência, conhecida também como natureza búdica. É o nosso potencial para nos tornarmos nós mesmos amigos imutáveis de todos os seres, irradiando amor, paz e bençãos dos nossos corações.

Patrícia Freitas

Patrícia é praticante Kadampa desde 2011 e procura sempre utilizar cada atividade de seu dia-a-dia como uma oportunidade de praticar os ensinamentos de Buda. Tomando esses ensinamentos como conselhos pessoais, ela busca seguir um caminho de bondade amorosa e sabedoria, para ser uma pessoa melhor para si e para os outros.
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