Um ano novo

Home-office. Acho que essas duas palavras, que vem do inglês e significam “escritório em casa”, nunca foram tão usadas como em 2020. Milhares de pessoas no mundo precisaram trabalhar de casa desde que se instalou um estado de pandemia. Com o passar dos meses, levantar da cama, tirar o pijama e achar motivação para trabalhar tornaram-se tarefas dignas de titãs.
Podemos nos perguntar, então, o que nos faz levantar da cama todos os dias? O que nos motiva? Ou como pergunta Venerável Geshe Kelsang Gyatso em um de seus livros: “o que consideramos o mais importante para nós – o que mais desejamos, pelo que nos esforçamos ou o que nos faz sonhar acordados?”
Minha resposta a estas perguntas antes de 2020 era bem clara: eu levanto porque preciso ir trabalhar. Mas agora parece que este motivo não está mais garantindo meu empenho em sair dos lençóis. Começava a ficar cada vez mais claro que trabalhar por trabalhar não me satisfazia mais. Eu precisava entender qual o sentido de todo dia fazer o que fazia.

O dia da marmota

Vocês talvez se lembrem de um filme dos anos 80 em que o personagem principal fica preso em uma pequena cidade do interior, vivendo repetidas vezes o mesmo dia. Ele dorme e acorda e todas as coisas se repetem igualmente, sem cessar. Assim também muitos de nós fomos obrigados a passar nossos dias nos últimos meses. Acordamos e dormimos buscando, muitas vezes, apenas nos distrair do fato de que os dias passam uns iguaizinhos aos outros. Desânimo, ansiedade e sofrimento apareceram sem cessar.
Embora possamos pensar que esse estado de coisas veio de um vírus surgido do outro lado do mundo, Buda nos diz que, na realidade, este estado de existência nos acompanha vida após vida. Entramos e saímos de nossas vidas experienciando sempre as mesmas coisas: nascemos, adoecemos, envelhecemos e morremos. No meio disso, temos ainda de fazer o que não queremos, e quase sempre não conseguimos fazer aquilo que queremos. Soa familiar? Neste ciclo de repetições sem fim, é inevitável que nos sintamos frustrados e entediados.

Mau tempo na mente

Voltemos então ao início de mais um dia e o enfrentamento desses sentimentos. Antes mesmo de chegar ao banheiro, precisamos chutar de lado o desânimo, sacudir a frustração e, com um suspiro longo, afastar o tédio. E aí que mora o perigo. Ficamos tão bons em nos distrair desses sentimentos que dedicamos pouco tempo para investigar de onde eles vêm e como fazemos para nos livrar deles de uma vez por todas. Nos contentamos, de alguma forma, em ficar temporariamente livres deles, apenas para que no dia seguinte comecemos de novo nossas lutas internas.
Como Buda nos explica, se tomarmos um tempo para olhar com sabedoria para esses sentimentos, veremos que eles muitas vezes surgem da nossa falta de perspectiva. Estamos na maior parte do tempo tão absortos em nossos próprios problemas que perdemos de vista que eles são apenas os nossos problemas, eventualmente eles irão passar. Como diz Venerável Geshe-la, são apenas um mau tempo na mente. Assim como acontece em uma tempestade, quando as nuvens dos nossos pensamentos negativos desaparecem, podemos novamente avistar o céu claro e vasto da nossa mente.
Precisamos então nos conectar com esse espaço amplo e calmo, de onde podemos observar algo para além de nossas próprias dores e, por fim, dar sentido à nossa vida. Saber porque levantamos todos os dias se tornou urgente. E entender que nossos motivos usuais não nos satisfazem mais, também.

Trocar eu por outros

Faz alguns anos que coordeno o trabalho que voluntários fazem no Centro de Meditação Kadampa Mahabodhi, e não é raro que eu ouça de muitas pessoas frases como: “aqui no Centro eu faço mais coisas que na minha própria casa!” Normalmente estes depoimentos vêm seguidos de largos sorrisos e um senso de gratidão. Se você já fez algum trabalho voluntário, alguma caridade, ou se já ajudou qualquer ser, então você sabe do que estou falando. Já sentiu essa força enorme dentro do seu coração, que faz você alegremente se empenhar em qualquer atividade que seja necessária. Essa força se chama compaixão.
É porque ela existe naturalmente em nós, que achamos fácil agir em benefício dos outros, quando assim desejarmos. Ela faz nosso esforço se tornar alegre, e mesmo o cansaço passa despercebido. Também é dessa mente que vem toda a nossa felicidade verdadeira, porque ela nos protege do desânimo, frustração, depressão e ansiedade. Quando nossa motivação se torna ser uma pessoa melhor para si e para os outros, quando incluímos os outros nos nossos pensamentos diários, temos um bom motivo para levantar da cama todos os dias.

Professora Patrícia

Patrícia é praticante Kadampa desde 2011 e procura sempre utilizar cada atividade de seu dia-a-dia como uma oportunidade de praticar os ensinamentos de Buda. Tomando esses ensinamentos como conselhos pessoais, ela busca seguir um caminho de bondade amorosa e sabedoria, para ser uma pessoa melhor para si e para os outros.

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