Uma das vantagens de trabalhar em casa, para alguns, é ter um pouco mais de tempo para se organizar, curtir a família e meditar, antes mesmo de começar o dia. No entanto, para algumas pessoas, a impressão foi que os dias ficaram mais curtos para o tanto de tarefas. A nossa percepção do tempo foi algo definitivamente transformado pela pandemia. E com ela, também nossa ideia de prioridade.
Destralhando meus arquivos digitais outro dia, encontrei um exercício de reflexão interior que fiz, para pensar sobre quais eram meus maiores objetos de apego naquele momento. Para minha surpresa, cada um dos itens listados, sem exceção, foram coisas que eu “perdi” com a pandemia. Praticamente de um dia para o outro, eu me vi sem nenhum dos objetos que eu observava como fonte de prazer, e algumas vezes, até de felicidade.
Na época que fiz a minha lista, eu tinha um propósito bem claro. Eu queria levar para minha meditação exatamente o cenário em que eu perdesse tudo aquilo, e examinar qual seria minha reação, o que aconteceria com a minha mente. Eu nunca poderia imaginar que esse cenário fosse se tornar real tão cedo, mas aconteceu. Graças a essa investigação, que eu aprendi a fazer com meu Guia Espiritual, eu pude treinar como manter meu coração em paz, mesmo quando estou privada do que eu desejo, ou preciso enfrentar coisas que eu não desejo.
Um conselho signifcativo
Se tivéssemos imaginado antes que iríamos enfrentar uma epidemia tão grave em 2020, com tantos mortos no mundo, tanta dor e sofrimento, talvez pudéssemos ter feito alguma coisa para evitar a magnitude da nossa tragédia. Certamente apreciaríamos se alguém tivesse nos dito com antecedência que era bom nos prepararmos para muitas privações e dificuldades. Qualquer pessoa hoje gostaria de ter recebido um conselho para, se não evitar, ao menos se preparar para a situação em que nos encontramos. Pois muitos séculos atrás, um mestre budista chamado Atisha deixou alguns conselhos para seus discípulos com a intenção de prepará-los para viver as mais desafiadoras situações. Do seu coração de compaixão, Atisha deu aos seus alunos ferramentas e recursos para enfrentar os cenários mais desesperadores, com uma mente serena e forte. Ele fez isso não apenas para que seus alunos fossem beneficiados, mas principalmente para que eles pudessem ajudar todos os seres que um dia precisassem.
Esses somos nós. Nós precisamos de toda a ajuda possível agora e graças aos dedicados alunos e discípulos de Atisha, que transmitiram esses conselhos adiante, nós hoje podemos acessá-los em nossa língua, de modo rápido e fácil.
Remédio para as doenças interiores
Os conselhos do coração de Venerável Atisha contém uma miríade de diversos assuntos. Eles vão desde como lidar com as nossas distrações até as maneiras de desenvolver mentes elevadas, como compaixão e sabedoria. Venerável Geshe Kelsang Gyatso, um mestre budista contemporâneo muito realizado, nos sugere tomar esses conselhos como pessoais. Trazê-los para dentro da nossa vida e aplicá-los aos problemas que surgem no nosso cotidiano. Se fizermos dessa forma, iremos perceber que para cada situação desafiadora exterior, existe um remédio interior, que nos deixará mais fortes e potentes para enfrentar o que quer que apareça. Isso não quer dizer que ao colocarmos os conselhos de Atisha em prática, deixaremos de observar pandemias, desastres naturais e mazelas por todo o mundo. Não iremos acordar em um conto de fadas. Mas sim teremos uma mente treinada e pronta para lidar com essas situações de modo construtivo, amoroso e eficiente, para aliviar nosso sofrimento e o de todos os seres.
Mesmo depois de muito tempo, quando lemos os conselhos de Atisha, não podemos evitar sentir que eles são muito atuais. Alguns parecem ter sido escritos para nós mesmos, para nossa vida moderna. Isso acontece por uma questão muito lógica e nada esotérica. Atisha baseou seus conselhos nos ensinamentos que Buda deu milhares de anos atrás, e eles continuam fazendo sentido para nós hoje porque, como Venerável Geshe-la explica no livro Budismo Moderno: “Nos últimos anos, nosso conhecimento tecnológico moderno aumentou consideravelmente e, como resultado, testemunhamos um extraordinário progresso material; porém não houve um aumento da felicidade humana correspondente a esse progresso material. (…) Isso mostra que a causa de felicidade e a solução para os nossos problemas não se encontram no conhecimento de coisas materiais. Felicidade e sofrimento são estados da mente e, portanto, suas causas principais não podem ser encontradas fora da mente. Se desejarmos ser verdadeiramente felizes e livres do sofrimento, precisamos aprender como controlar nossa mente.”
Um tempo para nosso eu do futuro
É para isso que Atisha deu seus conselhos e preparou seus discípulos, para que eles treinem suas mentes em busca do caminho para a libertação e a felicidade permanente. Um de seus conselhos que eu mais gosto – e também um dos mais úteis para nossos tempos – diz o seguinte: “Já que não há um momento no qual as atividades mundanas cheguem ao fim, limitem suas atividades.” Ouvimos isso já com 150 argumentos prontinhos para debater com Atisha sobre como somos muito ocupados e como ele não sabe o que é ter que trabalhar, cozinhar, lavar, passar e etc. Mas devemos nos perguntar de modo sincero: na hora que nosso eu do futuro precisar de uma mente forte e potente, cheia de amor e sabedoria para lidar com os mais diversos desafios que nos esperam, vamos convencê-lo dizendo que estávamos ocupados com nossos mil projetos? Seremos capazes de viver com a ideia de que podíamos ter nos preparado melhor para nosso futuro, mas preferimos assistir uma nova série, fazer supermercado ou ver nossas redes sociais?
Não precisamos deixar de fazer nenhuma dessas coisas para cuidar de nosso eu do futuro. Precisamos apenas dedicar nosso espaço mental para cultivar mentes virtuosas e desenvolver todo o nosso potencial. Assim, não teremos medo do futuro e abraçaremos de modo sincero e confiante todas as adversidades que um dia surgirem para nós.